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Os Inteiros de Gauss e as origens da Teoria dos Números Algébricos

Entre os anos de 1808 e 1825, o matemático alemão Carl F. Gauss, investigava questões relacionadas à reciprocidade cúbica  (x3 º q(mod p) onde p e q são números primos) e à reciprocidade biquadrática (x4 º q(mod p) onde p e q são números primos), quando percebeu que essa investigação se tornava mais simples trabalhando sobre Z[i], o anel dos inteiros de gaussianos, do que em Z, o conjunto dos números inteiros. O conjunto Z[i] é formado pelos números complexos da forma a + bi, onde a e b são números inteiros e i = (-1)1/2.

      Gauss estendeu a idéia de número inteiro quando definiu o conjunto Z[i], pois descobriu que muito da antiga Teoria de Euclides sobre fatoração de inteiros poderia ser transportada para Z[i] com conseqüências importantes para a Teoria dos Números. Ele desenvolveu uma Teoria de Fatorização em Primos para esses números complexos e demonstrou que essa decomposição em primos é única, como acontece com o conjunto dos números inteiros. O uso que Gauss fez desse novo tipo de número foi de fundamental importância na demonstração do Último Teorema de Fermat.

      Os inteiros de Gauss são exemplos de um tipo particular de número complexo, ou seja, números complexos que são soluções de uma equação polinomial

 anxn  +  an-1 xn-1  + ... + a1x  + a0 = 0,

 

onde todos os coeficientes an,  an-1, ..., a1, a0 são números inteiros. Esses números complexos que são raízes de uma equação polinomial com coeficientes inteiros são chamados de números inteiros algébricos. Por exemplo, a unidade imaginária, i, é um inteiro algébrico, pois satisfaz a equação x2 + 1 = 0, a raiz quadrada 21/2 de 2, pois satisfaz a equação x2 – 2 = 0. Observe que os números i, 21/2 são exemplos de inteiros algébricos e não são números inteiros.

      Existem infinitos números algébricos e infinitos números reais que não são algébricos, tais como o número de Euler e,  ou como a área p de um círculo de raio 1. Um número que não é algébrico é chamado de “número transcendente”. Os números transcendentes são todos irracionais. Contudo, a recíproca não é verdadeira, pois 21/2 é um número irracional e algébrico como vimos acima.

      A generalização da noção de número inteiro para número inteiro algébrico dá exemplos especiais de desenvolvimentos muito mais profundos que chamamos de Teoria dos Números Algébricos.

      Uma grande parte da Teoria dos Números Algébricos desenvolveu-se por meio das tentativas de solução da equação diofantina, mais conhecida como Equação de Fermat

xn + yn = zn ,

 

pois os inteiros algébricos aparecem de maneira natural, como ferramenta para tratar desse problema.

      Nos anos de 1840 tornou-se evidente a importância do conceito de fatorização única. Em 1847 o matemático francês Gabriel Lamé (1795–1870) anunciou uma demonstração do Último Teorema de Fermat para todo expoente n nessa equação de Fermat. Contudo, o matemático Joseph Liouville (1809–1882), observando o método proposto, apontou que a demonstração assumia a unicidade da fatorização única de modo sutil. A suspeita de Liouville foi confirmada quando mais tarde recebeu uma carta do brilhante matemático alemão Ernest Kummer (1810–1893) mostrando que a unicidade da fatorização única falhava em algumas situações. A primeira começando para n = 23. Kummer tinha publicado havia  três anos um artigo em que demonstrava que a fatorização única não funcionava em determinadas situações destruindo assim a demonstração de Lamé. Infelizmente, o artigo de Kummer foi publicado em uma obscura revista e passou desapercebido por Lamé.

      Em 1843, Kummer acreditou que houvesse demonstrado o Último Teorema de Fermat usando o corpo Q dos números racionais, adicionado a raízes p-ésimas da unidade, isto é um número complexo V  tal que Vp = 1, onde p é um número primo ímpar. Kummer considerou a raiz primitiva p-ésima V da unidade, isto é um número complexo V  tal que Vp = 1, mas Vn ¹ 1 quando 1 < n < p. Considere Q(V) denotando o conjunto de todos os números da forma

 

ap-2 Vp-2  +  ap-1Vp-1  + ... + a1V  + a0 = 0,

 

onde os coeficientes ap-2,  ap-1, ..., a1 e a0 são números racionais.

      Os números em Q(V) que possuem coeficientes inteiros são chamados de inteiros algébricos de Q(V). Por exemplo, o número ½  + 3V  é um elemento  de Q(V), mas não é um inteiro algébrico; 4 – 8V + 3V2  + V3 é um inteiro algébrico.

      Kummer observou que somas diferenças, produtos e quocientes de elementos de Q(V) são elementos de Q(V) e que as somas, diferenças e produtos de inteiros algébricos são inteiros algébricos. Desse modo, Kummer ampliou a Teoria dos Números Inteiros Gaussianos para o conjunto dos inteiros algébricos de um corpo. Ele, então, tomou a seguinte decomposição da Equação de Fermat, para n = p, 

 

xp + yp = (x + y 1) (x + y V) ... (x + y Vp - 1) =  zp.

 

      Então, ele demonstrou que essa equação não possui solução x, y, z com xyz ¹ 0. Contudo, Kummer necessitava do fato de que para os inteiros de Q(V) a propriedade da fatorização única é válida e esse fato não é válido em geral. A propriedade da fatorização única é valida para p = 3, 5, 7, 1l, 13, 17, 19, mas não é válida, por exemplo, para p = 23. Essa propriedade não é válida para um número infinito de primos p.

      Kummer teve a brilhante idéia de criar mais inteiros de modo a recuperar a propriedade da fatorização única. Contudo, esses inteiros não pertenciam a Q(V). A idéia era utilizar esses novos inteiros como fatores dos inteiros algébricos de Q(V) de tal forma que fosse possível recuperar a fatorização única. Esses novos inteiros foram chamados por Kummer de Números Ideais e considerou-os da forma:

 

(ap-2 Vp-2  +  ap-1Vp-1  + ... + a1V  + a0)1/ r

 

onde os coeficientes ap -2,  ap -1, ..., a1 e a0 são números inteiros e r é um inteiro positivo. O número r não é arbitrário, a sua escolha está relacionada a certos valores admissíveis de acordo com a escolha de

 

a = ap-2 Vp-2  +  ap-1Vp-1  + ... + a1V  + a0.

 

Prosseguindo-se nessa linha de raciocínio existe um inteiro h, chamado de class number do corpo, que depende somente do corpo dado Q(V) e é tal que, qualquer que seja a dado, todos os valores admissíveis de r dividem h. Quando Q(V) possui a propriedade da fatorização única, o valor r = 1 é obviamente o que precisamos para restaurar a fatorização única. Isso se reflete no fato de que o class number h será igual a 1 se, e somente se Q(V) possui a propriedade da fatorização única.

Quando Kummer revisou a sua demonstração do Último Teorema de Fermat, sob um novo olhar, ele percebeu que poderia demonstrá-lo para mais expoentes primos, mas não para todos. Ele encontrou uma demonstração que valia para primos que não dividiam h, o class number associado ao corpo Q(V).  Desse modo, ele reconheceu que alguns primos apresentavam um padrão que designou por regularidade: se o primo p não divide h é chamado de primo regular, e é chamado de primo irregular caso contrário. Utilizando essa propriedade da regularidade que alguns números primos apresentam, Kummer conseguiu demonstrar que o Último Teorema de Fermat se aplica a todos os expoentes n = p que sejam primos regulares. Os únicos primos irregulares menores que 100 são p = 37, 59, 67.

      Em 1850, superando as dificuldades da não-unicidade da fatorização única e introduzindo a Teoria dos Números Complexos ‘ideais’ Kummer demonstrou o Teorema de Fermat para todos os expoentes até 36 e para todos os expoentes primos inferiores a 100, com exceção  dos expoentes primos não regulares 37, 59 e 67. Observa-se que apesar de p = 23 não possuir a propriedade da fatorização única, o resultado de Kummer sobre primos regulares mostra que o Teorema de Fermat é verdadeiro para esse expoente. Além disso, Kummer também desenvolveu métodos poderosos com aplicações a muitos outros problemas de matemática e produziu trabalhos importantes em refração atmosférica e balística.

      Essa teoria tomou uma forma distinta da que Kummer nos legou. O matemático Dedekind (1831-1916) reformulou o conceito de número ideal proposto por Kummer, propondo o conceito chave fundamental de ideal de um anel que  permanece até hoje. A definição de Dedekind é distinta da definição de Kummer, mas demonstra-se que elas são equivalentes.

Na próxima coluna, estudaremos um pouco da fatorização dos ideais de Dedekind.

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