Você está em Comunidade > Colunas

O jogo da qualidade de vida III

Do que eu preciso para ser um bom jogador, isto é, um jogador que minimize os desconfortos e a dor, e maximize o prazer de viver e a minha qualidade de vida? A resposta, sem dúvida, é que eu preciso de inteligência. Contudo, essa resposta implica, imediatamente, em uma inevitável e intrigante pergunta: é possível que eu nem sempre esteja apto a utilizar a inteligência?

O jogo da qualidade de vida II

Recordemos, de passagem, que conceitos como indivíduo, qualidade de vida, etc., referem-se a elementos do jogo matemático JQVI e não têm nada a ver com qualquer indivíduo humano em particular ou com a vida humana tal qual ela é concebida pelas pessoas e entidades reais. O jogo matemático pode guardar analogias com a vida real e sugerir padrões da realidade humana; porém, é apenas um exercício matemático da capacidade do cérebro de criar cenários virtuais subjetivos.

O nosso objetivo é, por meio desse exercício, descobrir padrões antes imperceptíveis aos olhos da consciência desarmada de Matemática.

Ninguém sabe definir precisamente e de modo não ambíguo o que seja a inteligência do indivíduo. Entretanto, os indivíduos parecem utilizar suas inteligências no JQVI de modo sistemático. Pelo menos é o que sempre dizem quando perguntados ou parecem dizer a si próprios.

É improvável encontrar-se um indivíduo convencido de que não é inteligente. Porém, não é improvável encontrar-se um indivíduo que esporadicamente se convença de que “cometeu uma burrice”. Freqüentemente, ocorrem situações de conflito em que um indivíduo afirma estar certo sobre um determinado assunto e seu oponente, que pensa justamente o contrário, também afirma o mesmo. Como isso é possível?

A resposta é simples. Paul Dirac deduziu matematicamente a existência da antimatéria, confirmada posteriormente no laboratório por outros cientistas. Partículas e antipartículas, como o elétron e o pósitron, são hoje em dia um fenômeno corriqueiro na Física. Por que a antiinteligência não seria também um fenômeno corriqueiro que se opõe à inteligência? Essa analogia nos parece plausível. De fato, partindo dessa hipótese é possível explicar facilmente tantas situações quantas são as situações de inteligência, só que simetricamente opostas. Admitimos que os indivíduos podem ter gradações de inteligência e de antiinteligência simultaneamente.

O que não é fácil é a determinação de quais indivíduos são predominantemente inteligentes e quais são predominantemente antiinteligentes. Assim, todo indivíduo pode ser dotado de uma dose de inteligência e, ao mesmo tempo, de uma dose de antiinteligência. Nesse ponto, a analogia com a simetria matéria-antimatéria pode ser obtida observando-se que ganhos são anulados por perdas, e vice-versa, enquanto o indivíduo mantém doses das duas características.

Sendo assim, uma boa maneira de se comprovar esse modelo é o indivíduo analisar suas situações de ganhos e perdas de qualidade de vida e verificar a presença simultânea da inteligência e da antiinteligência. De passagem, citemos apenas um exemplo trivial que o leitor poderia facilmente generalizar para outras situações. O exemplo é a cena em que um indivíduo afirma ao amigo que não mais jogará futebol aos domingos porque se cansou de se machucar. Os ganhos obtidos por meio da inteligência que recomenda exercícios físicos foram anulados pelas perdas impostas pela antiinteligência de escolher um esporte baseado na violência física.

Em nossa análise do JQVI assumimos que é impossível determinar logicamente quem é mais inteligente ou mais antiinteligente. No decorrer do jogo, todavia, essa determinação ocorre de modo desimpedido pela ação da força social. Isso quer dizer que os conflitos dessa natureza são resolvidos à força, isto é, por imposição do interesse do indivíduo socialmente mais forte. Portanto, ressentimentos sempre estão presentes, embora o vencedor do conflito freqüentemente anuncie que prevaleceu a “razão” ou a “solução mais racional”, ou ainda, que prevaleceu a inteligência. Esse padrão é de fundamental importância no JQVI. Daremos um destaque a ele na forma de regra do jogo.

Regra 8. Todos os indivíduos, se perguntados, dirão que são inteligentes, principalmente a si próprios. Raramente, um indivíduo se convencerá verdadeiramente de que praticou um ato antiinteligente. Nos conflitos inevitáveis, prevalecerá o interesse do mais forte socialmente. Ressentimentos se acumulam como conseqüência dessas soluções sociais, gerando novos conflitos que, por sua vez, serão resolvidos segundo o mesmo padrão. Esse processo vem se arrastando no JQVI por muitos milênios. Os conflitos de interesse acabam com a morte dos indivíduos envolvidos, ou de um deles. Os indivíduos vivos dão continuidade ao padrão.

A Regra 8 não impede que indivíduos utilizem suas inteligências para sobreviver e se proteger dos outros confiando que antiinteligentes são todos aqueles que contrariam o seu interesse, ameaçam sua integridade e impõem custos e prejuízos, materiais ou psicológicos.

Selecionamos mais uma estratégia importante do JQVI.

Estratégia S2. Não é recomendável afirmar que o oponente é antiinteligente em nenhuma situação. Porém, secretamente, devo considerar seriamente essa possibilidade, uma vez que o outro se opõe a mim de modo hostil. Vislumbro possíveis prejuízos provocados pelo outro e, portanto, preciso me proteger com inteligência das estratégias dos antiinteligentes. Acredito no aperfeiçoamento da minha inteligência para melhorar sempre a minha qualidade de vida. O paradoxo incômodo de que, se o outro utilizar a mesma estratégia, então um de nós estará errado, ou ambos estaremos errados, não tem eficácia em impedir que eu me utilize dessa estratégia. A razão é que a evolução da natureza fez essa seleção para meu cérebro e essa é a única opção que reconheço. Isto é, prefiro ficar com a crença de que sou eu o inteligente.

Portanto, esses são os termos que propomos em nossa análise do JQVI para incluir a característica “inteligência” dos jogadores.

Um problema natural e interessante que surge é o de saber se a inteligência dos cientistas e da ciência não poderia se constituir na referência absoluta da realidade chamada “inteligência”. No JQVI que estamos analisando, isso não é possível devido à Regra 8.

O mais importante conflito nos moldes da dualidade simétrica inteligência-antiinteligência é o da oposição entre razão e mistificação. Quem é que usa a razão e quem é que usa a mistificação para analisar a realidade? Em nossa análise do JQVI consideramos a Matemática associada à razão de um modo íntimo. Na verdade cultivamos a hipótese de que a Matemática é o melhor modelo de razão.

Como exemplo, citamos as opiniões possíveis de um indivíduo sobre a chuva. Do ponto de vista da inteligência, ou seja, da razão, ou ainda, da Matemática, as condições meteorológicas são os axiomas (ou teoremas já demonstrados) e a chuva é o teorema deduzido logicamente de tais hipóteses. Simetricamente, do ponto de vista da mistificação, ou da antiinteligência, a chuva é a quantidade de lágrimas derramadas por uma deusa que foi contrariada e repreendida por Zeus, o deus de todos os outros deuses. Enfatizamos que é impossível resolver esse conflito logicamente, uma vez que não há como demonstrar que Zeus e os outros deuses não existem. Assim como não há como demonstrar que sempre que tais condições meteorológicas estiverem presentes, choverá. Por mais que se comprove, ano após ano, que essa inferência é aceitável, ninguém sabe se sempre ela o será. Os autores dessa coluna apostam em tal inferência, mas reconhecem o problema lógico da impossibilidade de uma demonstração rigorosa de que sempre ganharão a aposta.   

      No decorrer do JQVI um indivíduo optará por uma das duas opiniões. Em nossa análise do JQVI definimos inteligência por analogia à escolha meteorológica para a explicação da chuva e antiinteligência por analogia à escolha mitológica.

A pergunta natural que se impõe é se atos inteligentes sempre geram qualidade de vida (QV) e, simetricamente, se atos antiinteligentes sempre geram o oposto da QV. Uma outra hipótese subjacente à nossa análise é a de que não existe descendência lógica das posições de inteligência e de antiinteligência. Essa é mais uma característica crucial do JQVI. Aquele indivíduo que se gaba de que terá uma vida com mais QV porque fez uma opção inteligente poderá se decepcionar posteriormente ao verificar que uma conseqüência desastrosa se seguiu e, portanto, estava enganado sobre a inteligência de sua opção.

Desse modo, a QV não é necessariamente boa porque o indivíduo foi inteligente em uma certa decisão. Analogamente, uma decisão antiinteligente pode acarretar uma maior QV. Como exemplo, citamos o indivíduo que doa parte de seu dinheiro para uma igreja e se sente muito melhor, portanto, constatando que sua QV aumentou. Para um outro indivíduo, essa doação pode ser vista como antiinteligente.

Diríamos, por simplicidade, que os indivíduos antiinteligentes podem também ter QV. A QV não é conseqüência lógica da inteligência e nem o seu oposto é conseqüência lógica da antiinteligência, simplesmente porque esses dois atributos são relativos ao observador sendo incerta qualquer realidade objetiva, independente e robusta por trás da observação. Sintetizando o papel da inteligência no JQVI formulamos a próxima estratégia que pode ser escolhida por indivíduos para melhorar sua QV.

Estratégia S3. Não é possível saber se minha inteligência produzirá mais QV. Entretanto, é a única opção que possuo, fornecida pela evolução do cérebro ao longo de milênios, para planejar minha ação no instante seguinte. Se eu verificar que uma perda de QV ocorreu, então recorro novamente à minha inteligência para reparar essa perda. Continuo acreditando que sou inteligente, embora tenha que, eventualmente, reparar certas perdas.

Voltar para colunas

Curso on-line do Só Matemática

Coleção completa das videoaulas do Só Matemática para assistir on-line + exercícios em PDF sobre todos os assuntos, com respostas. Clique aqui para saber mais e adquirir.