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Estruturas finitas de números  

É comum ouvir-se por aí que “o ensino de matemática vai mal”, ou que “os estudantes estão muito fracos”, e outras tantas “denúncias” sobre a ineficiência de nossas escolas. Mas, em termos de matemática, qual seria um exemplo interessante da má qualidade das práticas educacionais vigentes?

Temos a impressão de que há inúmeros exemplos interessantes, e graves, de práticas educacionais inadequadas na área de matemática. Um exemplo gritante é o fato de não haver em certos países, pelo menos não é de nosso conhecimento, um programa de apoio aos estudantes que demonstram logo cedo talento em matemática, física e química, principalmente em matemática, ou um interesse fora do comum por ciência, e um encaminhamento sério desses indivíduos talentosos para uma vida de dedicação à matemática e à ciência, com a finalidade de se criar quadros intelectuais científicos sem os quais não pode haver geração de novos conhecimentos, de novas tecnologias e autonomia de um país na criação de riqueza. 

Sabe-se que uma certa porcentagem das crianças, parece que cerca de 3% (mesmo que seja menos do que isso o nosso raciocínio continua válido), é de superdotados, uma parte dos quais poderiam se revelar matemáticos talentosos em 10 ou 15 anos. Nunca ouvimos falar, em certos países, de qualquer programa sério de apoio à formação desses cidadãos cuja inteligência poderia começar a gerar em 10 ou 15 anos conhecimentos preciosos que conduziriam, de um modo ou de outro, à produção de novos conhecimentos nas universidades, nos institutos de pesquisa, de riquezas materiais nas indústrias e nas empresas de alta tecnologia. Esse, nos parece, é um dos maiores erros estratégicos que um país pode cometer, pelo qual já se paga caro no início da era da informação e do conhecimento. Sem querer alongar o assunto, lembremos de passagem da Índia que, de modo quase despercebido, tornou-se, recentemente, um dos centros mais importantes de inteligência aplicada à criação de softwares. Ou de Bill Gates e sua fundação, que há cerca de dois anos destinou 1 bilhão de dólares a uma instituição de Boston que “caça” talentos infantis e juvenis em matemática, física e química. Ou ainda de John Kennedy que, apavorado pelo primeiro passeio de Yuri Gagarin em torno da Terra, imediatamente mandou criar escolas para gênios, uma das quais no Bronx, em Nova York, gerou vários Prêmios Nobel em Ciência.

      Mas aqui trataremos de um problema mais fácil de ser analisado. Vamos dar um exemplo do que acreditamos ser um erro grave no ensino da matemática e, por conseguinte, na formação intelectual dos estudantes. Em algum momento, a noção de número aparece para os estudantes, não interessa aqui determinar em qual série, seja numa forma apresentada pelos professores de matemática, seja por influência dos pais, ou seja lá por qual motivo for. O que nos interessa é analisar o que acontece depois disso. É famosa a dificuldade da maior parte dos estudantes em lidar com as regras de sinais, as regras de operações com frações, as regras de manipulação com decimais, etc. O que está por trás de toda essa dificuldade e toda essa perda de tempo e desperdício? Acreditamos que a principal razão seja o despreparo matemático dos professores que, em grande parte, é adquirido em despreparadas e obsoletas faculdades de matemática. Daremos, aqui, um exemplo, para ilustrar essa tese, que acreditamos ser bastante “desconhecido” daqueles que, ou bem, ou mal, se preocupam com a questão do desconhecimento matemático de um povo.

É simples: qual é o primeiro modelo de “número” praticado nas escolas? Sem dúvida é o modelo de “número natural”. Não precisaremos discutir o conceito rigoroso de número natural para explicar nossa tese. Bastam-nos algumas observações intuitivas. O modelo dos números naturais é um modelo infinito de números. Até aí nenhuma novidade, não é? Pois bem, é aí no “óbvio” que reside um dos problemas. Esse modelo de conjunto de números, ou seja, o modelo dos números naturais, é um modelo que pode ser entendido intuitivamente como um modelo matemático de um processo abstrato cíclico infinito. Podemos pensar no processo de contagem que é bastante intuitivo e historicamente primitivo. O modelo dos números naturais é, portanto, um modelo de uma descrição de um processo cíclico infinito que, obviamente, nunca chega a completar o seu ciclo. Por essa razão, talvez, ele nunca seja interpretado dessa forma nos níveis fundamental e médio. Adicionar uma unidade com outra, numa seqüência repetitiva sem fim, simula um processo cíclico infinito em que uma idéia (a de adicionar 1) simplesmente se repete monotonamente, absolutamente do mesmo modo em cada passo. Isso na verdade é muito simples, todos “sabem” do que se trata, não é esse o nosso problema. O problema, ao nosso ver, está no fato de que, não sabemos por que, não se enxerga o fato óbvio de que os ciclos finitos também existem, e são abundantes na natureza, inclusive no próprio mundo das idéias. Os processos cíclicos finitos como dia e noite, estações do ano, dias, meses, anos, batimento cardíaco, fenômenos astronômicos, etc., são fundamentais na vida e na imaginação humanas. Ora, então somos obrigados a perguntar pelos modelos finitos de números. 

Quais são os modelos de números que descrevem esses processos cíclicos finitos? Por que o sistema de ensino insiste num único modelo, e justamente concentra esforços num modelo de processo cíclico infinito, ignorando inexplicavelmente os modelos dos processos cíclicos finitos?   

Representando o dia pelo símbolo 0 e a noite pelo símbolo 1, e a passagem de um para outro como o resultado da adição com 1, obtemos a interessante “álgebra” 0 + 0 = 0, 0 + 1 = 1, 1 + 1 = 0. E aqui uma “surpresa”: 1 + 1 = 0. Ou seja, um período depois da noite é um dia. Outra surpresa parecida obtemos quando representamos as estações do ano primavera, verão, outono e inverno por 0, 1, 2, 3, e a passagem de uma para outra como o resultado da adição com 1. Dessa forma, a nova “álgebra” que aparece é a seguinte: 0 + 0 = 0, 0 + 1 = 1, 1 + 1 = 2, ... , 3 + 1 = 0. Ou seja, uma estação depois de um inverno é uma primavera.

Do ponto de vista de quem tem interesse e curiosidade matemática, há perguntas inevitáveis: que diabos de estruturas são essas? Quer dizer que tem sentido operarmos com símbolos numéricos como se fosse um mero jogo mas, é claro, motivado por situações reais? Como se brinca com esse jogo pra valer, isto é, explorando todas as conseqüências que se fizerem necessárias a partir da álgebra acima? Por exemplo, podemos facilmente dizer, pela experiência que temos com os naturais, que 3 vezes 1 continua sendo 3 no sistema das estações do ano. Mas 2 vezes 2 tem que ser necessariamente 0. Talvez a mais excitante seja a pergunta: o que acontece de diferente em cada um desses sistemas finitos conforme vamos aumentando o ciclo? Por exemplo, no sistema de um ciclo de 5 estados (agora já não importa mais para quem tem curiosidade matemática se esse ciclo existe na natureza) temos 1 + 1 + 1 + 1 + 1 = 0. Como é sua tabela de multiplicação? Em que suas tabelas de adição e de multiplicação diferem (ou se assemelham) às tabelas dos outros ciclos de tamanho 2, 3 e 4?

  O leitor percebe então que não é preciso milagre para se investigar matemática interessante num nível elementar, ou seja, no nível do ensino fundamental e médio. Ou será que um menino ou uma menina de 11 anos vai se recusar incondicionalmente a brincar de descobrir por si mesmo como preencher essas pequenas tabelas? É claro que se os professores não tiverem a menor idéia do que se passa com esses sistemas finitos, e não tiverem a menor curiosidade por ciclos finitos da natureza, jamais um estudante de nossas escolas fundamentais e médias ficará sabendo que é mais natural um sistema finito de números do que o sistema infinito (muito mais complexo) dos números naturais. Observe o leitor que o sistema de restos na divisão de um número natural pelo natural n obedece rigorosamente a álgebra que “acidentalmente” descobrimos a partir dos ciclos naturais finitos da natureza. Não daremos mais detalhes aqui, mas o leitor curioso e amante da matemática poderá facilmente constatar isso por si próprio. Por exemplo, se um número tem resto 3 quando dividido por 5, e outro tem resto 1, então a sua soma tem resto 4 quando dividida por 5. Da mesma forma, resto 3 mais resto 2 dá resto 0.

Aí está, pois, um exemplo grave de deformação no sistema de ensino de matemática.

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