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Estruturas finitas de números II 

Vamos antecipar uma das possíveis críticas que se podem fazer à proposta do nosso artigo anterior. Do nosso ponto de vista essa é a única crítica relevante que aquela proposta admite. Mas na verdade tal crítica só é possível porque nossa intenção foi apresentar uma idéia de modo muito simples e direto. Hoje daremos os detalhes que faltaram e acreditamos que depois disso será muito difícil alguém (que goste de matemática e que não quer que as crianças sejam medíocres) recusar o passeio pelo caminho dos sistemas finitos de números.

A maneira como motivamos os sistemas finitos de números permite a seguinte crítica: "primavera + 1 = verão" não é uma equação válida porque é uma soma de quantidades não homogêneas...! É claro que estamos falando em termos intuitivos e não temos preocupação de rigor com a palavra "quantidade". Mas o fato é que fica estranho pensar na "soma de uma estação do ano com um número puro". Então fazemos o seguinte: fixamos a estação primavera em nosso pensamento e a indicamos por P. Daí para frente só pensaremos nas estações que se seguirão depois de decorridos alguns períodos. Por exemplo, P + 1 = V, onde indicamos apenas a estação que se segue da primavera após um período de três meses. Isso quer dizer que nossas crianças brincarão de descobrir o que acontece quando repetimos esse raciocínio. Elas descobrirão uma tabela muito interessante: P + 1 = V, P + 1 + 1 = O (outono), P + 1 + 1+ 1 = I, P + 1 + 1 + 1 + 1 = P. Com uma pequena ajuda do professor (é para isso que existe o professor) as crianças "descobrirão" que a imaginação "1 + 1 + 1 + 1" produz o mesmo que a imaginação "fazer nada", ou ainda, se precisar a ajuda do professor, "1 + 1 + 1 + 1 = 0". Elas perceberão que podem brincar com os símbolos "=", "+", "0" e "1". Não há mais o problema de "relacionar quantidades não homogêneas". Essa é uma grande descoberta, não só para as crianças, digamos de 11 anos, mas para qualquer pessoa curiosa em relação à matemática. O professor pode enfatizar o belíssimo fato de que apenas quatro símbolos foram usados nesse sistema de números: "0, 1, +, =". E aí está uma grande oportunidade para o professor conduzir as crianças numa experiência muito útil com a idéia de simplificação tão fundamental na matemática. A simples experiência "1 + 1", "1 + 1 + 1", conduz imediatamente a um problema novo: a necessidade de simplificação e de economia no uso de símbolos e operações. 

Um dos grandes problemas para quem se inicia em matemática, é o problema de se acostumar com a necessidade de usar símbolos para as idéias. Cada número precisa de um símbolo diferente. Uma das razões pelas quais o sistema infinito dos números naturais é extremamente complexo para as crianças é que ele necessita de infinitos símbolos para a representação dos números. A criança tem que resolver, entre outros, o problema de como ela poderia produzir esses infinitos símbolos necessários para a representação dos naturais. Isso não é fácil e não foi resolvido com total clareza pela humanidade antes do ano 1000 depois de Cristo: é o famoso sistema posicional indo-arábico, cuja descoberta pode ser comparada à criação do computador digital. O sistema posicional indo-arábico e o computador digital permitiram revoluções profundas no conhecimento humano, simplesmente porque tornaram disponíveis os resultados de cálculos complicados. O leitor pode ter uma idéia muito simples disso tentando calcular 13 x 29 usando algarismos romanos.

No caso do sistema posicional, a idéia mais simples que se pode associar a ele é a idéia da simplificação da representação dos números. Isto é, como podemos simplificar, por exemplo, a representação "1 + 1". Ninguém terá paciência para escrever "1 + 1 + 1 + 1 + 1 + 1 + ... + 1" toda hora e ainda ter que calcular adições e multiplicações com essas expressões. Esse é, arriscamos dizer, o primeiro problema do professor de matemática do ensino fundamental: fazer com que as crianças incorporem símbolos e os usem na representação dos números. Mas há uma dificuldade extra: tudo isso tem que ser feito com economia e simplicidade sob pena de inviabilizar os cálculos e o progresso no estudo da matemática. Ao simplificarmos a expressão 1 + 1 = 2, 1 + 1 + 1 = 3, estaremos dando uma grande ajuda à criança na solução do problema fundamental de representação de números que, no caso dos números naturais, exigirá a engenhosa solução indo-arábica do sistema posicional. Assim, a criança poderá experimentar todos os aspectos fundamentais de um sistema de números, de modo simples, e brincar à vontade com as possíveis generalizações.

Observe o leitor que o sistema "1 + 1 = 2, 1 + 1 + 1 = 3, 1 + 1 + 1 + 1 = 0" possui apenas seis símbolos (0, 1, 2, 3, +, =), pode ser completamente motivado pelo sistema das estações do ano, e propicia duas tabelas, matematicamente muito interessantes, com as quais as crianças podem brincar até cansar e, quando cansarem dessas, podem pesquisar os sistemas cíclicos seguintes de 5, 6, 7, etc., estados. É importante que o professor introduza a tabela de multiplicação porque a multiplicação faz parte da solução do problema da simplificação: 1 + 1 = 2.1, 1 + 1 + 1 = 3.1. Mas isso traz, imediatamente, um novo problema e uma descoberta importante: os novos símbolos 2 e 3 não poderiam também ser "adicionados" e "multiplicados"? É muito importante que essa "brincadeira com um sistema finito" tenha um final muito bem compreendido: o ciclo das estações do ano foram representadas numericamente, resolveu-se o problema da representação numérica de um sistema cíclico com poucos estados possíveis, resolveu-se o problema da simplificação e da economia de símbolos e operações, e abriu-se um caminho muito natural de continuação para o pensamento, ou seja, o caminho da representação de todos os ciclos finitos possíveis. O professor deve se encarregar de garantir que as duas tabelas abaixo estejam completamente incorporadas à experiência de cada criança, se certificando que ela é capaz de interpretar e explicar como cada entrada da tabela foi conseguida. Só vemos uma maneira do professor ter certeza de que as crianças incorporaram essa experiência: verificando o que elas conseguirão brincando com o ciclo de cinco estados.

O resultado líquido de tudo isso é um só: as crianças poderão perceber que símbolos podem ser relacionados com "grande liberdade". Essa é a grande lição da matemática, ou seja, não precisamos "pegar as coisas com as mãos para raciocinar sobre suas propriedades". Podemos raciocinar por meio de representações simbólicas, mas há vários problemas naturais que precisam ser resolvidos antes que essas representações possam ser efetuadas com sucesso. As crianças já precisam enfrentar esses problemas quando iniciam suas experiências com números. E nada mais natural do que começarem com os sistemas mais simples de números, os sistemas finitos.

O professor de matemática bem informado sabe que há um outro ganho extraordinário nessa estratégia de ensino de matemática: as crianças podem naturalmente iniciar-se na medição de simetrias, noção fundamental da ciência contemporânea. As formas mais simples de simetria são os ciclos finitos. Os sistemas finitos de números nada mais são do que medições das simetrias mais simples. Não somos contra a experimentação das crianças com os números naturais, mas devemos ter em mente que esse sistema representa um ciclo infinito e, portanto, as dificuldades a serem vencidas são não triviais, destacando-se o problema de geração de infinitos símbolos. Por que não permitir às crianças a experiência anterior da representação dos ciclos finitos? 

+ 0 1 . 0 1
0 0 1 0 0 0
1 1 0 1 0 1
   
+ 0 1 2 3 . 0 1 2 3
0 0 1 2 3 0 0 0 0 0
1 1 2 3 0 1 0 1 2 3
2 2 3 0 1 2 0 2 0 2
3 3 0 1 2 3 0 3 2 1

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