Você está em Comunidade > Colunas

Cuidado com contadores de estórias que espelham o contador (I)   

Essa é uma das inúmeras recomendações que um desses dois autores passa, já há quase sete anos, a seus alunos de Cálculo Diferencial e Integral, do Curso de Tecnologia Mecatrônica do Senai em São Caetano do Sul, se é que desejam pesquisar a verdade objetiva dos fatos. Hoje, em pleno Século XXI, o maior perigo para um indivíduo espécime de Homo sapiens (Hoss) é receber uma informação falsa. O pior de tudo é acreditar nela, usá–la prejudicando outros ou destruir–se por meio dela como quem bebeu veneno.

Vivemos a grande era da mentira. Não é que a mentira tenha surgido agora, muito pelo contrário, mas agora ela se espalha pelo globo terrestre como vírus à velocidade da luz por meio de boatos, fibras óticas, transmissão de satélites e computadores, e permeia todas, sem exceção, as relações entre os indivíduos da rede Hoss.

A matéria prima da vida cotidiana na rede Hoss é a informação. Além da produção frenética e universal de mentiras, ainda há o fato de que a informação que ainda não se tornou mentira é continuamente deformada, falsificada e manipulada para servir a interesses menores de certos espécimes, ou de grupos organizados para a usurpação de cargos, vantagens, bens e riquezas para si próprios, de Hoss nem de longe interessados em interferir positivamente na evolução de sua espécie para que ela seja um pouco menos agressiva e perigosa. É de arrepiar a hipótese de a maldade humana se espalhar pela Via Láctea. Talvez, sabiamente, o Universo tenha produzido radiação cósmica mortífera como medida preventiva e asséptica.

É uma grande dificuldade para um espécime de Hoss considerar uma informação e verificar se ela é verdadeira ou falsa, ou determinar o grau fuzzy de veracidade dela (na Matemática Fuzzy o valor verdade não se restringe a 0 ou 1, ele pode assumir qualquer valor entre 0 e 1). É uma luta contínua e árdua lidar com informações e separar as que não são mentiras, ou seja, não são simplesmente vírus maliciosos.

Contadores de estórias, até mesmo aqueles que se interessam em interferir positivamente na evolução de sua espécie, podem inadvertidamente agravar esse quadro na medida em que introduzem estórias difíceis de serem entendidas, mais difíceis ainda de serem comprovadas, inverossímeis e, provavelmente falsas, se bem que sem maldade.

Os alunos (de um de nós) de Cálculo Diferencial e Integral são incentivados a ler a excelente Scientific  American (Sciam) brasileira. Porém, sabemos que é necessário estar sempre alerta e verificar incansavelmente  a verossimilhança das saborosas informações lá contidas. Isso é muito difícil e, em geral, não fazemos nada com a maior parte delas, mas, de vez em quando, alguns alunos nos abordam com perguntas difíceis como as que passamos a relatar.

São raros os artigos sobre a Matemática nos meios de comunicação de massa como jornais e revistas de grande circulação. Talvez isso se deva ao profundo e amplo desconhecimento matemático do cidadão brasileiro comum. Paradoxalmente, essa característica da rede social brasileira pode favorecer o aparecimento esporádico de artigos fantasiosos sobre a Matemática porque a probabilidade de verificação da sua verossimilhança será bem pequena.

Um artigo da Sciam de fevereiro de 2.005 gerou o diálogo seguinte entre um de nós e um aluno.

— Aluno (A): O que significa “uns mais iguais do que outro”, você não ensinou que a igualdade é transitiva?

 — Professor (P): Sim, a igualdade é transitiva por definição e continuará sendo para sempre. Você encontrará nesse artigo afirmações das mais difíceis de decifrar e algumas fantasiosas, até hilariantes, mas, felizmente,    sem sentido. A relação de igualdade entre dois objetos, sejam eles matemáticos ou não, é isenta de “dosagem”, ou seja, não tem sentido para o pensamento claro e distinto a afirmação de que a é mais igual a b do que a c.     A não ser que introduzamos uma versão fuzzy da relação de igualdade o que parece não ter sido ainda explorado por pesquisadores da Matemática Fuzzy. Em princípio, “flexibilizar” a noção de igualdade pode causar uma grande confusão no pensamento claro e distinto dos espécimes de Hoss, anulando a condição básica de objetividade (mesmo entendida como intersubjetividade) do método científico, porque a primeira conseqüência imediata será a perigosa situação “ninguém sabe mais quem é quem ou o quê é o quê”. Por exemplo, se estivermos passando diante de um portão aberto e um pit–bull se aproximar não saberemos se ele tem a característica assassina igual aos outros com passado de homicidas, porque nosso conceito de igualdade foi “flexibilizado”, e a demora em bater em retirada rápida poderá custar–nos uma morte inútil bem dolorida ou, o que é pior, condenar–nos a um resto de vida conhecidos como “a reencarnação do Frankstein”.  

 A. Você diria que é inútil fazer perguntas do tipo “Será que eu poderia ser mais ou menos igual a mim mesmo?” “Ou será que o número 1 poderia ser mais ou menos igual a 2 dividido por 2?” 

P. Acho que não é interessante para a espécie Hoss retroceder vários séculos e renunciar à noção básica    de “clareza e distinção de uma coisa”. Foi tão difícil para alguns espécimes de Hoss descobrir, entender e incorporar essa noção (parece que a grande maioria dos 6 bilhões ainda não incorporou essa noção) que tem dado tantos frutos em ciência, e acho um grande desperdício abandoná–la agora só porque alguém, não se sabe por que, esteja se esforçando para torná–la confusa. A transitividade da igualdade (se a = b e b = c, então  a = c) tem que ser mantida e, felizmente, os matemáticos nem de longe cogitaram ou cogitam mudar isso. Nem passa pela cabeça deles qualquer fantasia nessa linha.

 — A. Então, o que significa o título desse artigo?

 — P. Isso não quer dizer que, como já mencionamos, não sejam possíveis novas estruturas matemáticas (fuzzy, por exemplo) para modelar novos fenômenos físicos. Porém, caso isso ocorra, nenhuma estrutura matemática terá que ser destruída por causa disso. Todas continuarão existindo, embora algumas possam não ser mais utilizadas na modelagem do mundo. Isso é assim já faz um bom tempo de vários séculos.

 A. Você não respondeu a minha pergunta.

 — P. O próprio título do artigo da Sciam já não tem sentido.

 — A. Não faço a menor idéia do que significa o subtítulo.

 — P. O subtítulo do artigo parece sofrer da mesma fantasia do título:

 “No mundo quântico, a idéia de que os objetos são indivíduos é falaciosa.

 Idéias parecem não estar no mundo quântico e sim na mente dos espécimes de Hoss. A propósito, o que é mesmo “mundo quântico”? Quem foi que definiu esse objeto com clareza e distinção, recebeu o prêmio da unanimidade dos cientistas, e teve a gentileza de trazê-lo ao nível do leitor leigo? Também não sei.

 A. Você andou falando em suas aulas que os espécimes de Hoss têm um computador quântico biológico (QB) portátil dentro da caixa craniana. A mente não é quântica?

 — P. Bem, se aceitarmos que a mente dos espécimes de Hoss seja quântica, então as idéias estão no mundo quântico, mas, então, o que do Hoss não pertenceria ao mundo quântico? O mundo quântico não poderia ser tudo o que existe uma vez que seria percebido por uma mente quântica produzida por um QB? O que seria o “mundo não quântico”?  E por quê?

A. Mas o que está escrito lá não parece ter relação alguma com o que você acaba de dizer.

P. Introduzir em uma estória de poucas linhas a expressão “mundo quântico” é o mesmo que recorrer à entidade “Espírito Santo”: vai, certamente, dificultar o entendimento claro e distinto (racional) dela. Além do mais, idéia não pode ser falaciosa, assim como o verde não pode ser salgado. Uma argumentação      sim pode ser falaciosa. Idéias são pensadas e não importa se correspondem a objetos reais ou não, em qualquer sentido que se dê ao termo “realidade”. Essa simples confusão, infelizmente, me leva a temer confusões mais profundas, amplas e sutis do contador de estória. O artigo já não me atrai e, sim, me repele, lamentavelmente.

Continua...  

Voltar para colunas

Curso on-line do Só Matemática

Coleção completa das videoaulas do Só Matemática para assistir on-line + exercícios em PDF sobre todos os assuntos, com respostas. Clique aqui para saber mais e adquirir.